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Ontem a Bruxa Gó, minha amiga pisciana que acredita que tudo tem “timing” cósmico e que as pessoas nascem com relógios astrais invisíveis colados ao peito, disse-me que trinta e cinco era uma idade muito simbólica para uma mulher.
“Mas porquê agora?”, perguntei. “Achava que era aos cinquenta…”
“Não, não… agora é aos trinta e cinco. Até aqui foi só ensaio geral.”
Confesso que me assustei. Sempre fui mais de primeiros atos e finais épicos do que de meados simbólicos.
Quando era miúda, a minha prima — essa irmã de sangue com sotaque de moliceiro e de ovos moles — costumava dizer: “Kikas, olha que a vida depois dos 30 acaba!” E eu acreditava. Com a solenidade trágica de quem ainda tem acne. Mas não acabou. Só se reorganizou em versões mais confusas e misteriosas. Agora ela diz que depois dos “enta” é ainda pior. Que se começa a ganhar coisas estranhas como colesterol, paciência e saudade de coisas que nunca aconteceram.
O meu pai, com aquela beleza sábia dos que envelhecem como vinho bom e teimoso, diz que estamos velhos, mas naturalmente mais bonitos. O meu tio — virgiano e pragmático como quem mede o tempo em garrafas — já marcou a festa dos 70. “Para ter tempo de organizar a adega”, disse, com a seriedade de quem sabe que a festa é sempre o pretexto para o vinho, e não o contrário.
Os meus avós perguntam quando os visito no bosque encantado onde vivem entre pinheiros, sopa da pedra, e aquele amor antigo que se constrói como casas: com cimento e tardes de domingo.
O meu irmão deu-me aquele abraço doce que só os alemães sabem dar (oder nicht?). Curiosamente os mesmos que inventaram a palavra “Fernweh”, que é saudade de um lugar onde nunca estivemos — uma coisa que eu, no fundo, sempre senti.
E os D’s — de nome, de duradouro, e de D’Expofacic (perdoem-me esta piada terrível que só quem cresceu em Cantanhede, com sotaque e a saber onde se compram bolos na Póvoa da Lomba às 5 da manhã, pode entender) — continuam a ser faróis de presença à distância: o D suíço enviou aquele coração dourado e abraço de Montreux, como prova de que os lagos e as montanhas também sabem amar; a D portuguesa brindou-me com aquela alegria infindável de quem sabe viver junto ao mar, e não precisa de justificações para ser feliz, junto dos seus.
E é aqui, entre mensagens, abraços e silêncios, que começa a pergunta inevitável:
O que é casa?
Durante anos achei que casa era um erro de sistema no meu mapa astral. Os bruxos dizem que tenho “qualquer coisa” no céu que diz que não tenho casa. Talvez seja Aquário a falar. Ou uma Lua distraída. Ou as 12’s e as 8’s a fazer das suas.
Em pequena e a crescer foi assim: Arganil, Cantanhede, Coimbra, Cantanhede outra vez. Depois Palma de Maiorca. E Frankfurt. E Bonn. Lausanne. Paris. Rennes. (Yverdon-les-Bains, se quiserem ser exatos.) Depois Berlim, Barreiro, São Tomé, Guiné…
…e então, o Quénia.
Foi no meio da savana, sob o céu imenso e as constelações que não se vêem quando se olha para cima no ocidente, que plantei uma bela acácia — daquelas que crescem em forma de abrigo, iguais às do Rei Leão.
E foi ali, com as mãos na terra vermelha e o coração silencioso, que me encontrei com o mundo inteiro.
Foi ali que entendi, sem dúvida, sem metáfora, sem receio:
que eu era do mundo.
E que o mundo era, finalmente, minha casa.
Antes disso, o coração partia-se em pequenas cartografias emocionais. Nunca inteiro. Sempre dividido.
Nunca morava toda em lado nenhum.
E isso doía.
Havia noites em que eu pedia ao universo — ou talvez só ao escuro do teto — para me dar uma raiz. Uma âncora. Qualquer coisa que não se desfizesse em aeroportos e despedidas. Queria ser de um lugar. Só de um. Com pronúncia e padaria.
Mas não fui feita assim.
Fui feita de travessia.
De fragmentos.
De vozes.
De lugares onde não sabia o nome das árvores mas já sabia o nome do silêncio.
Hoje, aos 35, percebo.
A minha casa não é um lugar.
É o mundo inteiro a caber-me no peito.
É a linguagem da diferença, o sotaque da empatia, o cheiro da terra molhada em vários continentes.
A minha casa são as pessoas que me habitam. As que ficaram, as que partiram, as que voltam como estações.
A minha casa é este corpo que aprendi, finalmente, a escutar.
É esta mente em festa crítica.
Este coração-vagabundo.
Esta alma que não se fixa mas se entrega.
Hoje, no caminho de Aquário — esse signo que sonha com o futuro, mas às vezes esquece de lavar a loiça do presente (desculpa, Paulinha!) — celebro não um número, mas um entendimento:
Que a fratura foi formação.
Que a divisão era treino para a inteireza.
Que não ter casa era o caminho para ser casa.
E talvez, só talvez, os trinta e cinco sejam mesmo o começo.
O ensaio acabou.
As cortinas abriram.
E eu estou finalmente a habitar a personagem principal:
eu.
Sem palavras :) Quero acompanhar-te nesta volta ao Sol🤩
Coração lindo a acompanhar as palavras que pulsam e caminham nesse grande amor que é a tua celebração da vida. 🩷